quarta-feira, 27 de abril de 2011

Filmagens de Faroeste caboclo agitam o Jardim ABC, na Cidade Ocidental(Correio Brasiliense)

Daniel Ferreira

Carente dos serviços mais básicos, o local lembra a Ceilândia da década de 1970 e servirá de cenário para o filme sobre a famosa canção da Legião Urbana
Ao entrar no Jardim ABC, bairro de Cidade Ocidental (GO), a 36km do Plano Piloto, é possível ter a impressão de voltar algumas décadas no tempo. O desenvolvimento urbano ainda não chegou por ali. As estradas são de terra batida, não há grandes construções e as casas têm jeito de interior. Nas próximas semanas, porém, a rotina da pequena localidade sofrerá uma transformação. Em breve, o Jardim ABC ficará conhecido em todo o Brasil pelas telas do cinema. Mesmo que muita gente não saiba — e nunca saberá — de que lugar se trata, pois será identificada como a Ceilândia do fim dos anos 1970. A região carente servirá de cenário para boa parte do filme Faroeste caboclo, previsto para entrar em cartaz em outubro, e inspirado na música de Renato Russo — a composição de 1979 foi lançada no disco Que País É Este?, da Legião Urbana, em 1987.
O diretor brasiliense René Sampaio encontrou no bairro o lugar ideal para representar a antiga Ceilândia, na qual viveu o personagem central da canção, João de Santo Cristo. Era preciso um local sem tantos prédios e com pouco asfalto, bem diferente do que se tornou a Ceilândia de hoje. Ao ver o Jardim ABC, o cineasta não teve dúvidas: passariam-se ali muitas das desventuras de Santo Cristo. As casas cenográficas estão em construção. Serão pelo menos sete — uma de tijolos e seis de madeira — e um boteco. Pedreiros trabalham dia e noite para adiantar o serviço, todos felizes com a chance de aumentar a renda. Os vizinhos assistem a tudo com atenção. Nunca viram antes tanta gente de fora.
A notícia das filmagens na região mexeu com o imaginário do povo, acostumado com a falta de opções de lazer. Ali, bom mesmo só o Cerradão Show, local onde vez ou outra bandas de forró se apresentam a preços populares ou de graça. Na semana passada, chegou também um parque de diversões não muito conservado, com direito a mulher-macaca e centopeia gigante sobre rodas.
O Jardim ABC fica na divisa com o DF, bem ao lado do terreno onde é erguido o condomínio de luxo Alphaville.
O contraste entre as duas realidades é grande. Dados do censo demográfico mais recente indicam que essa é uma das regiões do Entorno que menos tiveram melhorias nos últimos anos. Menos de 5% das ruas têm asfalto. Falta também saneamento básico. Não há agência bancária, hospital, delegacia, enfim, nenhum dos serviços básicos dos quais os cerca de 20 mil habitantes do local necessitam para viver bem. 
Em meio a toda essa precariedade, o que mais preocupa a população são os crimes. A delegacia mais próxima do Jardim ABC fica a 20km, na Cidade Ocidental. Mas é difícil falar em estatísticas, porque a comunidade local não tem o hábito de registrar boletins de ocorrência por falta de fé no Poder Público. Até crimes como estupro, às vezes, não chegam ao conhecimento de investigadores. Ainda assim, segundo a Polícia Civil de Goiás, são investigados pelo menos 60 registros por mês no lugar.
O Jardim ABC tinha apenas um carro da PM para proteger toda a região até a semana passada. Depois do protesto de comerciantes contra a violência, realizado há 15 dias — eles interditaram a principal via de acesso à cidade, a DF-140, e atearam fogo em pneus —, mais um veículo foi enviado à cidade. Está, no entanto, longe de ser o suficiente.
A expectativa é de que R$ 10 milhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal sejam liberados até o fim deste ano para a cidade. O dinheiro, de acordo com o administrador da localidade, Afonso Eduardo da Silva, será investido em obras de asfalto. Todo mês, a prefeitura destina em torno de R$ 100 mil para o bairro. Afonso Eduardo garante que a verba é usada para a manutenção do único posto de saúde local (não funciona 24 horas), da iluminação pública, da quadra de esportes, além de empregada no pagamento de funcionários e de outras despesas.

Lote 14
Em 18 e 19 de abril, quando um carro de som rodou o Jardim ABC anunciando a procura por figurantes para o filme, o povo fez fila na frente da Administração Regional. “Eles ofereceram 200 vagas para figurantes. A fila se formou numa rapidez que você precisava ver”, relatou a funcionária do órgão Raiane Viana, 24 anos. Tinha homem, mulher, criança, gente alta, baixa, idosos e jovens. Todos queriam participar do filme. Para ganhar o cachê de R$ 40 por dia e também se divertir um pouco.
Na semana passada, a equipe começou a escalar a figuração. Muitas crianças estavam na lista. Entre elas Kamilly Idelfonso, 8 anos. “Eu vi o carro de som na rua e liguei para a minha mãe me inscrever. Esses dias, eles telefonaram dizendo que fui escolhida. Eu sempre sonhei em ser atriz e aparecer na televisão”, disse a garota, empolgada.
A dona de casa Carmen Lúcia Marques, 44 anos, que nunca pensou em ser atriz e foi ao cinema pouquíssimas vezes na vida, também se candidatou a uma vaga. Ainda não teve resposta. “É a minha chance de ver aquela menina da novela de perto e ainda ganhar uma graninha”, explicou. A “menina da novela” é a atriz Isis Valverde, que viverá o papel de Maria Lúcia, o amor de Santo Cristo. 
Boa parte da população nem imagina quem foi Renato Russo ou do que fala a música que inspirou o filme. A dona de casa Cida dos Reis, 26 anos, baiana como João de Santo Cristo, casada com João Macedo Alves, 37, e mãe de cinco filhos, nem sequer ouviu falar no artista. “Acho ótimo gravarem o filme aqui. Vai mostrar para o mundo o jeito que a gente vive. Quando chove, minha casa alaga, entra lixo”, disse Cida, que mora em um dos lotes 14 da região.
Na canção, João de Santo Cristo marca um duelo com seu maior inimigo, o traficante Jeremias, “amanhã, às duas horas, na Ceilândia, em frente ao Lote 14…” Não se sabe ao certo se o Lote 14 realmente existiu ou se fazia parte do imaginário de Renato Russo. É nesse local que ocorre a cena apoteótica da música: a morte do protagonista, que pouco antes de partir assassina seu algoz. Tudo isso será encenado no Jardim ABC. O povo segue na esperança de que a movimentação, além de bons momentos, atraia olhares do Brasil para os esquecidos.

Saga roqueira
O filme é baseado em uma das músicas mais famosas de Renato Russo. A canção tem cerca de 9 minutos de duração. Ela conta a saga de João de Santo Cristo, um jovem negro e nordestino que veio para Brasília em busca de uma vida melhor. Ele se envolveu com tráfico de drogas e violência, além de frequentar a Asa Norte, Planaltina, Taguatinga, Ceilândia e ir a festas de rock “pra se libertar”. Também conhece o grande amor da sua vida, Maria Lúcia.

Luz, câmera, ação

20 mil - Estimativa da população do Jardim ABC
R$ 100 mil - Quanto a cidade recebe de verba do governo federal mensalmente
200 - Quantidade de figurantes escolhidos pela produção do filme 

Fonte Correio Brasiliense

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